Passagem - O Grande Cisne Branco
Como deve ser a nossa passagem? Confesso, não faço ideia. A vida sempre nos mostra o seu lado monótono porque ela esconde dos nossos olhos o verdadeiro teor da sua essência, a nossa efêmera existência.
Mas deixando de falar da vida, vamos falar da passagem, como ela deve ser?
Por muito tempo fiquei a imaginar tal fato. Num dia de folga, fui até a Praça do Lido, no coração de Copacabana, para ver a vida que passava a minha volta, por muito tempo olhei as crianças naqueles brinquedos típicos de uma praça e me perguntava como elas não se arrebentavam no chão, ri comigo mesmo, pois eu, quando criança, fiz muito pior. Enquanto pensava com os meus botões, uma criança chegou bem perto de mim e começou a me olhar com cara de curioso, depois de um tempo ele me falou em tom inocente, típico de uma criança que, quando morremos, somos levados por um barco para outro lugar.
Assustei-me com o que ele me falou, mas dei um sorriso e disse que tudo não passava de um sonho que tínhamos quando dormíamos, ele riu de mim e saiu correndo de volta para o parquinho. Achei interessante ele ter afirmado em vez de perguntar a respeito, mais ainda, sobre a forma que ele pode ter obtido aquelas informações da vida além do túmulo. Mas acabei não levando muito a sério. De qualquer forma era tentador pensar no assunto e, depois de um tempo indeterminado entre mim e a minha mente, cheguei há uma possível conclusão, os pais dele eram muito religiosos e por isso, de alguma forma, eles passaram essa história para ele, depois de algum parente ter morrido e, de forma fictícia, falaram como seria essa travessia.
Ri com os meus botões, afinal quando o meu irmão morreu, eu não vi nenhum navio, sequer um barquinho de papel. Depois de algum tempo, deixei o assunto em segundo plano para enfim esquecê-lo de fato. Afinal a vida era complicada demais para dar muita atenção a tal assunto. Ao imaginar o dia seguinte, com tantos trabalhos a desenvolver, trânsito, faculdade, além do stress diário, que acabei passando a dar mais atenção a minha vida real do que a fantasia.
Já passavam das 8 da noite quando decidi retornar para o meu apartamento, nesse momento já sonhava com a minha cama confortável, a televisão ligada em algum canal de pesquisa científica, o copo d'água sobre a mesa bem do lado da cama e uma boa noite de sono. Imaginar acordar depois de uma noite mal dormida não estava nos meus planos.
Cheguei ao meu apartamento na cobertura do edifício Remanso, que fica na Rua Barata Ribeiro, que dava vista para o Corcovado e para o Pão de Açúcar. Fiquei um tempo a admirar a paisagem e a imaginar a natureza viva que eu sentia ao ver aqueles dois cartões postais a minha frente. Creio que me perdi no tempo e no espaço, a imaginar a afirmação daquela criança. Por volta das 11 horas acabei sendo vencido pelo sono e fui para o meu quarto, nada de espetacular, mas confortável o suficiente para mim e a minha solidão passarem a noite, tinha sido um dia tenso, com vitórias e derrotas, rotinas do dia a dia, pensando aqui e ali, acabei por me deitar, mas ainda assim, fiquei com a história do menino na minha cabeça, não deixava de ser interessante e era tentador demais para pensar em outro assunto. Na vida do outro lado será que eu teria asas? Ou não?
Num riso despretensioso e já deitado na cama, acabei por olhar a mesinha do lado da cama para dar o último gole d’água antes de dormir, mas o que vi do lado dela foi de assustar.
Uma criança em tom sorridente me pedindo para segui-lo. O susto foi enorme, no entanto, ao perceber que se tratava da mesma criança que me abordou na praça, com o sorriso tão agradável e segurança inigualável que, por fim, acabou por me passar uma paz interior que eu nunca havia sentido, pelo menos até aquele momento. Ele me conquistou a ponto de a serenidade dar lugar as altas palpitações do meu peito.
Perguntei como ele havia entrado no meu apartamento, já que estava tudo fechado e uma criança não anda por aí à toa, pedindo para entrar em edifícios, principalmente naquela hora da noite. Em resposta, ele apenas me deu a mão para que eu a segurasse. Sentindo uma imensa tranquilidade no corpo, além de uma sensação de total leveza, entreguei-me a ele, sem deixar de lado a curiosidade de saber como ele havia entrado ali e mais ainda por saber onde ele queria me levar.
Após pegar o elevador e descer alguns lances de escada, chegamos a entrada do edifício e ganhamos a Rua Barata Ribeiro. Sem delongas ele pegou o caminho para a esquerda, rumo a Rua Figueiredo de Magalhães, apesar dos meus apelos para que não o fizesse devido ser tarde da noite, os perigos eram muitos, sem contar que teria que saber a respeito dos seus pais, pois eles deviam estar desesperados a procura dele. Ele continuou andando pela rua sentido praia e eu ao seu encalço, só de bermudas e descalço em meio a uma Copacabana silenciosa, que apesar de ser noite, ainda mantinha o calor do dia, devido o verão que estava forte, mais uma vez, o que já estava virando uma rotina.
Ao entender a minha confusão a criança parou e, novamente sorrindo, pediu que eu não me preocupasse, que o nome dele era Gabriel, meu anjo guardião, e que era tarefa dele me guiar para algo grandioso que seria mostrando para mim, para que eu fosse a testemunha, o evento da viagem para o pós vida. Pois um grande trabalho haveria de ser feito e o que seria visto serviria como base para tudo o que eu teria que fazer logo depois.
Gabriel explicou, de forma rápida, que eu iria testemunhar a partida daqueles que morreram e que irão fazer a grande travessia, não somente a partida, mas a chegada desses viajantes ao seu local de destino, como uma forma de narrar todo esse movimento e assim, criar meios de passar as devidas palavras para os que ficavam aqui deste lado, sem ter uma ideia sequer do que acontece nesse evento solene e dessa forma, tentar amenizar a dor de cada um dos que continuarão a sua estrada neste plano terreno.
Palavras suaves, mas que não partiam mais de uma pequena criança como eu pensava, havia muita maturidade naquelas informações que ele me passou. Típico de quem já tinha milênios de vida além das vidas. Na realidade eu era a criança ali naquele momento, só estava difícil digerir todo aquele cenário.
Nesse instante, já nas areias da praia de Copacabana, ele fez um sinal para as ondas do mar e delas apareceu um portal muito brilhante, em tom azul cintilante. Foi então que Gabriel se transfigurou, transformando-se num homem alado de quase 3 metros, virei um anão na frente dele, ele olhou para mim e deu uma risada antes de começar a falar comigo.
- Não consigo deixar de achar graça da cara que vocês fazem quando eu faço isso. Me desculpe, mas é para o seu bem. Não poderia me apresentar na minha forma natural. Imagina todo mundo me vendo assim, achariam que eu era o anjo da morte trazendo nas mãos a chave do apocalipse.
- Eu também imagino a cena, realmente seria um pandemônio. Mas por que o Arcanjo Gabriel teria um assunto tão emblemático com alguém tão anônimo quanto eu?
- Você não faz ideia do poder que tens meu amigo, você já sentiu a energia fluir em você, mas por medo, preferiu ignorá-la em vez de aceitá-la como um dom natural da sua essência. Mas não se preocupe com isso, trata-se de uma reação normal já que, devido ao livre arbítrio, vocês acabam tendo que achar as soluções das suas descobertas por si mesmos e optar por quais delas desejam seguir pelo caminho do destino.
- Bem, contínuo não entendendo o motivo de estar aqui, mas confio em você, se é para ser, que assim seja.
Terminado o diálogo, ele me apontou o portal e, junto a ele, entramos naquele azul cintilante sem fim. Foi uma viagem rápida e brilhante, não sentia peso nos pés, apenas o bailar do meu corpo no espaço-tempo, não havia calor e nem frio, só o silêncio e muita paz, além de uma luz forte a minha frente, que me ofuscava a vista, parecia que eu estava a voar assim como o arcanjo, que eu mal o via a minha frente.
Ao chegar do outro lado do portal, eu me senti tonto e com a sensação de ter tirado um peso enorme das minhas costas, o lugar ao qual havíamos chegado tinha um ar sinistro, como um velório. Era muito parecido com Copacabana nos tempos em que o inverno chegava com toda a intensidade, deixando o mar cinzento devido as nuvens que atapetavam o céu com as suas cores em diversos tons de cinza que cobriam toda a atmosfera que nos circundava.
Gabriel pediu que eu o seguisse, antes de caminharmos, ele disse que os sintomas que eu sentia eram normais devido a viagem interdimensional que tínhamos feito e pela atração gravitacional do local onde estávamos ser menor do que a da Terra.
Quando ia começar a fazer perguntas a respeito daquele lugar, ele apenas levantou a mão pedindo silêncio, apesar do seu gesto carinhoso, agora ele vestia uma face com um tom triste, como se estivesse acontecendo algo muito ruim e que ele não pudesse fazer nada, mas como assim?
O Arcanjo da revelação, trajado com a sua armadura dourada e a espada cintilante em azul e dourado ia a frente, mal sabia como conseguia distinguir o rosto e o corpo dele, tamanha era a luz, da áurea que ele emanava de si.
Não aguentei o silêncio e, depois de alguns minutos, o quebrei, tentando ser bem suave.
- Imagino que o que temos a frente é algo muito triste de se ver, noto pela sua cara de tristeza que há grande tribulação a frente.
- Não meu caro amigo, não se trata de tribulação. Apenas tristeza e dor sem fim de pessoas que estão com as almas arrasadas por algo que, se soubessem a real essência da natureza universal da morte, não ficariam assim. Mas a humanidade escolheu o materialismo em vez dos dons dados por Deus. E não aprenderam o real poder que Javé os presenteou e que se perdeu para o esquecimento, tendo alguns sinais fracos ainda em alguns mortais. Mas você é diferente e por isso pode compreender isso tudo.
- Sei sim, eu sou médium, consigo ter sonhos que na realidade são presságios, ver espíritos e diferenciar, através da energia que sinto, os espíritos que são do bem e os que são do mau.
- Você chama de mediunidade um dom natural humano, como se isso fosse um fenômeno, o que não é. Eu explicarei em outra oportunidade, pois já chegamos ao nosso destino.
E lá estavam eles, naquele porto mal iluminado e sem vida, o choro aos cântaros marcava a despedida dos que estavam partindo e o desespero dos que ficavam e, entre eles, anjos de estatura menor que a de Gabriel, tinham a minha altura e que, gentilmente, separavam os viajantes dos demais que não partiriam naquela jornada. Era a tristeza de quem ficava para trás, somada as incertezas dos demais que estavam por começar aquela viagem, tudo isso somado, dava aquele local um requinte de total caos e pavor a todos os que ali estavam.
De repente, entre o nevoeiro, apareceu uma embarcação que mais parecia um santuário, um grande navio em forma de cisne. Caso não fosse o cenário do momento, poderia dizer que era uma das imagens mais lindas que eu já tinha visto. Não obstante, aquela embarcação tinha um objetivo, transportar os viajantes para o outro lado, uma viagem em que o destino era um total mistério.
Sabendo disso, o clamor, a dor e o medo eram grandes de ambas as partes, o tempo passava a passos largos. A partida se aproximava, a dor e o total desespero reinavam naquele ambiente sem que houvesse um alento para os visitantes e viajantes daquele lugar.
Confesso que chorei, chorei de tristeza por tanto clamor, mães se despedindo dos seus filhos, os avós dos seus netos, os irmãos queridos, tios e amigos. Não há como ficar neutro diante da cena tão dolorosa que estava vendo, era frustrante não poder fazer nada.
O Grande Cisne, esse era o nome daquela colossal embarcação, daí percebi algo, que eu não sabia como aquele nome veio parar na minha cabeça e mais surpreendente ainda era que eu sabia tudo a respeito daquela embarcação, mas como?! Como eu sabia sobre a embarcação e todo aquele lugar? Por que Gabriel me tratava como se já me conhecesse?
Fiquei alguns minutos pensando naquilo tudo enquanto o Cisne começava a atracar no cais, que tinha o nome de acordo a sensação que ecoava por todo aquele lugar, o Cais da Dor, lugar de coloração acinzentada e opaca, com uma densa neblina encobrindo toda a área próxima ao atracadouro, lugar esse em que não era possível ver o sol, somente uma luz entre as nuvens. A neblina se afastava do limite da linha d’água próximo do lugar onde a embarcação atracava, a sua proa era do formato da cabeça de um cisne, o seu corpo era todo branco, fazendo uso de velas já que, a embarcação viajava ao sabor do vento. Tudo era feito a critério daquele que comandava a embarcação, ser que ninguém conseguia ver o rosto, pois a luz que emanava do corpo dele era ofuscante. Ninguém conseguia olhar para ele diretamente, mas a sensação de paz, amor e tranquilidade que ele passava para todos era tão intensa que o amor superava o medo e isso fazia com que todos ficassem à vontade diante a presença dele.
Uma trombeta tocou, dando a informação de que os viajantes teriam que embarcar. Nesse instante, a tripulação do barco e a do cais da Dor, começaram a separar os viajantes dos visitantes, que estavam lá para se despedir. Esse momento foi terrivelmente doloroso, já que os gritos de agonia e dor cortavam o ar e eram ouvidos aos quatro ventos. Nunca mais vou querer ver tamanho sofrimento em minha vida, dói demais observar tudo aquilo, era como uma espada que atravessa o peito, deixando o corpo aberto aos abutres, para que façam o grande banquete, com você ainda vivo. Não desejo ao meu pior inimigo tamanha dor, pois nem os inimigos são tão cruéis o suficiente para passar por tão dolorosa provação.
Nesse momento, Gabriel veio a mim e começamos um diálogo que me deixou sem chão para pisar.
- Por que você chora?
Falei para ele da forma mais sincera e possível que as minhas emoções puderam me passar.
- Não há como não chorar diante tanta tristeza, agonia e dor Gabriel. Ver tal situação deixa-me com a sensação da morte em vida no peito, já que os filhos não deveriam ser separados dos seus pais e os pais de seus filhos.
Ele continuou.
- Mas quando eles viajam, a trabalho ou para se divertir, deveriam chorar também?
- Não, já que, nesses casos, é uma jornada breve e, normalmente, eles retornam de tempos em tempos.
- Mas é o que acontece aqui todos os dias meu querido amigo, o fato de você não poder ver não significa que não aconteça. A você será mostrado tudo o que ocorre nessa viagem até o seu destino final, onde o fim vira um novo começo. Com todas essas informações você retornará e falará a todos que quiserem te ouvir, para acalentá-los e confortá-los no momento de dor e desespero e por fim, propagar a mensagem. Dessa forma, todos aqueles que ouvirem a sua voz e replicarem para as demais pessoas em mesma situação de luto, tudo o que você presenciou aqui, passarão por essa fase de forma mais branda. Sentirão a dor da partida e a saudade, mas nada mais além disso. Nada como o que vemos aqui neste momento. Os humanos serão mais fortes e a passagem desse evento mais amena. Tudo o que está sendo pedido aqui não é nada que você já não saiba fazer meu querido amigo.
- Gabriel, por favor, diga-me como pode dizer que eu sei fazer, se eu não tenho ideia do que está havendo de fato aqui?
- Porque a sua mente foi bloqueada, para a sua segurança.
- Bloqueada? Como? Eu já estive aqui?
- Você não acha estranho que tudo pareça, apesar de doloroso, tão natural para você? E mesmo que não tenha te falado nada, que você consiga descrever em sua mente, os nomes de tudo o que está vendo aqui?
- Realmente, apesar da dor que sinto, vejo tudo não com tanta surpresa quanto esperava, agora que a mente está voltando para o lugar e a lógica dos fatos encontrando novamente o seu prumo, me sinto em paz, mas quando a minha mente foi bloqueada?
- Antes de você renascer, para a realidade em que você vive agora, as suas lembranças de outras vidas foram bloqueadas, quando você retornar da Terra, as suas memórias retornarão para a sua mente.
- Eu já morri?
- Sim, mais de uma vez, e sempre teve grandes evoluções em suas jornadas para a Terra até aos seus respectivos retornos. Até que chegou um momento em que o grande Pai disse que não precisava mais voltar para a Terra, pois você já tinha evoluído o suficiente para ser encaminhado para outro nível da evolução da vida, mas por amor a sua atual mãe, pai e irmãos, você pediu para retornar mais uma vez para viver com eles mais uma vida e isto lhe foi concedido.
Não sabia mais o que pensar, até esqueci que tinha pernas ou que sabia andar, me joguei no chão e, um turbilhão de coisas começou a vir de uma única vez para a minha mente. Ur, Babilônia, Jerusalém, Atenas, Roma, Cairo, Londres, Rio de Janeiro, Jesus, asas, amor, paz, serenidade, Senhor dos Exércitos.... Sentia a cabeça latejar de tanta dor e, quanto mais o tempo passava mais rápido as visões chegavam, comecei a gritar de dor.
Nesse momento, o grande arcanjo lançou a sua mão rapidamente sobre o meu ombro e me olhou fixamente, vi os seus olhos azuis-esverdeados ficarem iluminados como a luz do sol em um brilho ofuscante que deu lugar a uma escuridão sem fim, acabando por me fazer cair em sono profundo. Tudo escureceu, o fim tinha chegado.
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Com uma dor na cabeça enorme e, ao mesmo tempo, sentido que ela estava oca. Foi assim que eu voltei do limbo, segundo o que Gabriel me falou, depois de 2 horas desacordado.
- O que aconteceu?
- Suas memórias, como você está fora do mundo terreno, elas começaram a retornar a sua mente, mas como você ainda está ligado ao seu corpo físico, o cérebro existencial não existe para suportar tamanha sobrecarga de informações que estavam chegando ao mesmo tempo a você, isso acontece normalmente no cérebro extra existencial ou subconsciente. Caso eu não intervisse, o seu corpo físico sofreria um apagão e você entraria em coma e jamais acordaria, só com a sua respectiva morte você conseguiria se libertar do corpo imóvel, então tive que intervir para bloquear o fluxo e te estabilizar. Vamos dizer que eu reiniciei a seu cérebro extra existencial e coloquei uma trava de segurança para que sua mente continue bloqueada.
Dito isso ele deu um breve sorriso e retornou ao trabalho de coordenar um grupo dos anjos a direcionar os viajantes para embarcarem no Grande Cisne Branco, foi quando a trombeta tocou duas vezes, indicando que a partida estava próxima.
Aos que ficaram, restou ir para um galpão sujo e mal iluminado, no segundo piso do Cais da Dor, onde havia uma área aberta para que se pudesse ver a partida dos seus amados. Alguns anjos da tripulação ficaram lá para oferecer os devidos cuidados aos visitantes mais exaltados pela dor da perda, esses tripulantes partiriam numa jornada posterior, já que, ali naquele porto, nunca deixavam de ter viajantes.
- Gabriel, por que este lugar é tão escuro e sujo? Não deveria ser mais limpo e aconchegante?
- Mauro, todo o lugar só existe pela vontade dos homens, que materializam coisas pelo trabalho, como é na Terra. Mas aqui, essas coisas se materializam com o sentimento gerado na alma de cada um. Você já viu algum cemitério multicolorido na Terra? Com certeza não. Na realidade, nas ficções e em qualquer evento característico, o que vemos é o cinza, o preto e o branco. Qualquer cor que lembre tristeza imperando no lugar. Caso as pessoas soubessem o que realmente acontece no evento da passagem do corpo físico para o corpo de luz, com certeza, este lugar não seria assim.
- Mas ao falar para as pessoas que este lugar só é assim por causa dos pensamentos deles, todos irão querer vir aqui e não irão voltar para o corpo físico de bom gosto.
- Por isso você foi o escolhido, pelo fato de você saber muito bem o papel deste lugar.
- Como eu sei disso se eu nunca estive aqui?
Gabriel deu um leve sorriso, olhou para o aquele galpão e falou sem olhar para o meu rosto.
- Antes de começar as suas jornadas para a Terra, você era um dos jovens anjos que ficavam aqui para dar apoio e consolo as pessoas que ficavam exauridas pela dor da perda. O amor que você transmitia para elas as acalmava e energizava a ponto de retornarem para os seus respectivos corpos físicos de uma forma mais amena, a maioria delas nem lembrava da presença delas aqui neste cais quando acordavam, pois, pelo seu amor, você também bloqueava a mente delas sobre o que elas viam aqui. Apenas algumas pessoas lembravam parcialmente do que havia acontecido e acabavam pensando em tudo como se tivesse sido apenas um sonho, o sonho da partida de um dos seus entes queridos, quando na realidade, devido ao poder natural da humanidade que vocês chamam de mediunidade, eles tinham estado aqui pessoalmente, apenas não em seu corpo físico.
- Qual é o meu verdadeiro nome Gabriel? Meu nome antes de nascer pela primeira vez?
- Quando Javé disse que você não precisava mais retornar para a Terra e que você se tornaria um arcanjo do meu tamanho, (Gabriel deu mais um sorriso), você recebeu o seu batismo definitivo, com um nome que só você, o seu anjo guardião, que no caso sou eu, além “Dele” próprio poderão saber, KAMAMAVE e a sigla do seu nome meu fiel e jovem anjo Kaio Maurus Maximus Verissimus, KAMAMAVE, da linhagem de Kamael. Como você pediu para retornar mais uma vez, Deus, feliz com a sua decisão, o batizou mesmo assim e permitiu que você fizesse a sua última viagem a Terra.
- Então quando tive aquele sonho com as esferas de luzes reluzentes viajando por uma área de relevo acidentado com arvores sem folhas, uma paisagem totalmente sem vida. E que uma sombra negra tentou se aproximar delas para roubá-las, tudo aquilo foi realidade e que as esferas de luz eram pessoas fazendo a travessia para o Éden?
- Sim, um demônio quis roubar aquelas almas que estavam fazendo a travessia do mundo sombrio para o Éden, pois elas conseguiram, depois de se arrependerem dos seus erros e buscarem o Grande Pai, a misericórdia de Javé. Elas estavam saindo do Umbral ou Inferno e viajando para um lugar de transição para que os anjos Samaritanos ou anjos da Guarda pudessem verificar o que era melhor para cada um, reencarnar ou seguir para o Éden. Para cada alma recuperada, o céu se fortalece e o inferno enfraquece a sua áurea negra sobre os homens. É lógico que o anjo caído não deixaria isso acontecer sem tentar contra a humanidade para que ela tivesse uma nova recaída. Ele armou uma armadilha para conseguir se aproximar e a tentar lançar tentações para as almas que estavam sendo salvas e, elas caindo novamente em tentação, desejassem voltar para o mundo sombrio. Naquele tempo há muito no passado, você era um dos guardiões que foram designados por mim para guardar a passagem para a travessia deles.
Eu estava atento a tudo o que Gabriel dizia, sem conseguir entender a dimensão de tudo o que ele me revelava.
- Quando você viu a besta saindo dos arbustos para atacar as almas, você gritou o nome de Javé tão forte e inflamou a sua áurea de luz num nível tão intenso que, não só fez com que o demônio que estava ali se colocasse em fuga devido a luz que você gerou como, por efeito dessa mesma energia descontrolada, você tenha explodido, numa explosão que destruiu tudo num raio de 30 quilômetros. Os demais anjos protegeram as almas que ali estavam dos efeitos da áurea que você gerou e, quanto a você, simplesmente o encontrei apagado e sem brilho no chão da cratera que você gerou, foi quando a luz de Javé tocou o seu corpo sem energia e fez você reviver, mesmo assim, demorou mais de 200 anos terrestres para você acordar devido a energia que você liberou.
Ficamos muito felizes quando você retornou para nós, mas a partir daí, como o seu amor era quase incontrolável pelos humanos e por toda a espécie animal da terra, preferimos que você canalizasse essa energia para as pessoas que chegavam ao Cais da Dor para que, dessa forma, o seu amor intenso as alimentasse e as curasse, de forma mais rápida, das feridas devido a dor aparente da perda dos entes queridos. E assim você ficou lá, por mais de 5 mil anos a cuidar daqueles que vinham junto com os viajantes para se despedirem deles aqui neste Cais.
- A partir daí fiquei te chamando de Faísca.
Demos uma gargalhada, mas eu ainda estava espantado com tanta coisa nova que foi falada para mim e que eu não fazia ideia que era de fato um acontecimento ocorrido em minha vida. Aproveitando o ensejo tentei falar de outro sonho que também estava fixado na minha cabeça, mas antes de abrir a boca, Gabriel se adiantou.
- Sei o que você quer perguntar, aquilo foi o seu teste de aprovação, você tinha acabado de se recuperar do encontro com a besta e Javé então quis provar que conseguia sentir o amor e a presença Dele. E por isso, você andou por aquelas terras sem vida, de montanhas e neve por mais de 10 anos, até achar aquela cidade, uma das cidades bases de Passagem, que existe em uma das regiões do Éden.
- E aquele anel de Rubi?
- Foi o meu presente para lhe dar boa sorte, pois sabia que, se precisasse, ele lhe ajudaria.
- Eu lembro agora, a cidade parecia ser Oriental, tipo as cidades do Nepal. Até pensei na lendária Shangri-lá quando acordei. Lembro da única via de acesso, era de paralelepípedos. Com muitas curvas e becos, a rua principal, que era a mais larga e decorada de todas as demais vias, me levava a praça central, durante a jornada por aquela cidade eu também lembro da senhora que me ofereceu arroz branco, mais a frente, o senhor que me ofereceu broto de alho, tudo para me manter forte para a jornada, que estava prestes a terminar. Quando cheguei na praça central, havia um templo do outro lado daquele lugar, estava a minha esquerda. Fui até a entrada, quando fui recebido pelo mesmo senhor que havia me dado o broto de alho, só que, seus olhos negros passaram a vermelhos, ele desembainhou uma espada de tom escuro e me partiu em dois, com o impacto, fui arremessado para o centro da praça. Foi quando algo mágico aconteceu, uma luz vermelha ofuscante saiu do anel de rubi e cobriu as duas partes do meu corpo e me regenerou. Não satisfeito, com o que havia acontecido, aquele senhor deu ordem a inúmeros guerreiros, de fisionomias bizarras, para me matarem. Eu vi, por várias vezes, o meu corpo ser despedaçado sem que eu pudesse fazer nada. No entanto, o anel que você me deu, sempre me regenerava. Como os soldados daquele homem não conseguiram me destruir, ele se inflamou de raiva e se transformou numa besta enorme, voando pelos céus da cidade e vindo ao meu encontro para dar fim a minha vida. Nesse momento eu pedi a ajuda de Javé e, quando me levantei, eu me vi transfigurado como um Serafim, com a minha armadura em azul turquesa, bordada de ouro nas laterais e uma espada dourada e, em seu gume, tinha escrito o meu nome, o nome que Javé me deu. Eu a desembainhei e dilacerei a besta nos céus em vários pedaços. Os monstros que ainda estavam naquela praça, ao verem o mestre deles destruído, partiram em fuga por portais que exalavam um cheiro de enxofre. Logo quando esses portais se fecharam, eu me vi, novamente, na minha forma natural. Nesse momento, vi as portas do templo se abrirem e uma luz começou a emanar de dentro dele, eu estava com medo de entrar, mas a senhora que tinha me dado arroz branco, na entrada da cidade, sorridente, disse que não deveria temer, pois o mal que ali estava tinha sido destruído e que agora eu tinha que terminar a minha jornada, eu a agradeci e fui de encontro aqueles portões enormes, mas apesar da luz que havia visto a distância, quando entrei, tudo estava escuro, notei um salão retangular, da entrada até o outro lado da parede não havia mais que 4 metros de comprimento por uns 20 de largura, dos portões de entrada eu conseguia ver um lance de escadas a minha frente e, de cada lado, havia uma tocha de madeira, bem adornada com adereços e inscrições que estavam num idioma que eu não conhecia. Lembro que pensei, "Graças a Javé". Ao pensar no nome “Dele” tudo mudou! O salão antes escuro e sujo ficou brilhante, num branco que jamais havia visto, o portão atras de mim havia se fechado, achei que tinha sido teletransportado para perto do sol, mas percebi que ainda estava dentro do templo ao ver as dimensões do ambiente no meu lado esquerdo, mas quando olhei para o lado direito, vi um imenso lençol, que impedia que eu conseguisse ver o que havia do outro lado, um pano imensamente branco e fino com adereços dourados nas bordas, mas isso não foi o mais espetacular, percebi que havia um ser, alguém, uma pessoa, do outro lado do lençol, foi quando escutei a voz:
- Meu filho amado, tua jornada terminou, sinto orgulho do teu sucesso!
- Me joguei ao chão, em adoração, pois mesmo sem ter visto o rosto, sabia que era Ele que estava do outro lado daquele lençol e que, na realidade, aquilo era uma proteção para mim, devido a imensa e infinita áurea de luz de Javé, pois eu seria destruído caso ficasse, frente a frente, com a própria essência do Grande Pai...
- Quando acordei, senti que, aquilo realmente tinha acontecido, mas nunca encontrei alguém que pudesse me falar sobre essa revelação.
Gabriel mais uma vez colocou as mãos em meus ombros e olhou novamente para os meus olhos, o bloqueio feito já estava se desfazendo, pois as lembranças reveladas desse sonho já estavam chegando, junto a outras lembranças, fortes e rápido o suficiente para que eu perdesse o controle e desmaiasse novamente. A voz dele foi única.
- Relaxe meu querido amigo, aquilo não foi um sonho, foi real, você travou aquela batalha contra um demônio muito poderoso e não foi o anel de rubi que te salvou, foi o seu amor pela paz, pelo amor e pela simplicidade, sinônimos do Grande Pai, que o regeneraram, a luz vermelha que emanava do anel era a sua própria áurea de luz agindo no seu corpo, e realmente, só os querubins tem o poder de ver o Pai face a face, nos arcanjos somos os guardiões dos mundos, os serafins os guardiões dos templos e os querubins são aqueles que contemplam a face do Pai, por serem os mais antigos, a sua transfiguração demonstrou o que você um dia será para todos nós, um grande guardião, não apenas dos templos, mas de todas as formas de vida, em sua fase juvenil, tenho certeza de que você será um grande Serafim! Por agora deixemos as lembranças de lado e vamos cumprir a sua missão, pois a sua áurea é muito forte e nem sempre os meus bloqueios funcionarão, terei que ficar mais atento a você. Faísca!
- Fiquei emocionado com tudo o que Gabriel me falou, mas tinha que deixar isso para frente, afinal, estava em missão.
Nesse momento três toques da trombeta se ouviram, o grande barco começava a desatracar, num instante Gabriel nos teletransportou para a proa da embarcação, quando vi o timoneiro dar a ordem para que as velas fossem soltas e, mesmo sem vento algum, senti que o Cisne começava a se locomover, os gritos de dor podiam ser ouvidos em alto e bom tom, de ambas as partes, não havia o que fazer, a não ser ver tudo aquilo e rezar por todos, mas uma pergunta me pegou de assalto, para aonde nós iremos? Como será? Já que essa parte Gabriel ainda não havia me contado.
Olhei para o lado e percebi que o meu guardião não estava mais ali e em lugar algum que eu tenha pousado os olhos.
Perdido em pensamentos, vi a embarcação entrar no nevoeiro denso, perdi a noção da direção já que não se via mais do que alguns metros, seja para qualquer lugar que eu me virasse. Os viajantes estavam cansados de tanto chorar, outros nem mais conseguiam gritar de tão exaustos, mas a pergunta que eu tinha feito para mim mesmo minutos antes, agora já era a pergunta de todos os demais, sobre qual era o destino daquela viagem. No meu caso, eu já sabia, só iria relembrar.
Só mesmo Javé para fazer uma reviravolta em nossas vidas. De um ser anônimo e sem causa, agora sei que fui um anjo e guardião dos humanos e que, quando retornar de forma definitiva, serei um Serafim, protetor do templo de Javé, das crianças e todos os seres vivos em sua fase juvenil. Pelo menos agora entendo a minha adoração por crianças e filhotes de todos os tipos de animais e a minha necessidade de protegê-los.
Algum tempo de total silêncio imperou na embarcação, minha cabeça ainda me turbinava creio que o meu corpo estava a mais de 50ºC devido tantas coisas que vinham e voltavam, mas depois que eu retornei do desmaio no Cais da Dor, Gabriel me ensinou que, quando sentisse o turbilhão novamente, que pensasse no grande Pai que tudo se acalmaria e não haveria a necessidade da intervenção do Grande Arcanjo da Revelação. Incrivelmente sempre que eu sentia que o turbilhão iria recomeçar, eu pensava em Javé e dava muito certo, tudo parava e voltava a ficar nas mais brancas nuvens.
Enquanto assimilava tudo o que tinha ouvido percebi uma forma de luz ficar a cada instante mais forte e envolvente, quando finalmente, saímos do nevoeiro e nos deparamos com o mar aberto, o sol a pino e várias gaivotas voando ao redor da embarcação, o brilho do Cisne Branco era vibrante, um branco como eu jamais tinha visto, chegava a ofuscar a visão a ponto de termos dificuldade de ver os golfinhos indicando o caminho a seguir, o cenário era interessante, tanto que diminuiu a sensação de tristeza dos embarcados, não sei quanto tempo passamos naquela situação, só sei que tudo o que vi era muito lindo.
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Passados alguns momentos, não sei bem quanto, o Grande Cisne fez soar não apenas uma, mas várias trombetas, num som bem estridente, totalmente diferente do som triste que havíamos ouvido antes, no Cais da Dor, agora aquele som fazia com que meu corpo entrasse em choque, como se tivesse sentindo a vibração da energia divinal no meu corpo.
Quando voltei a minha atenção para a parte central da embarcação, vi um alvoroço por parte de todos, os viajantes notaram que, bem distante, eles podiam avistar uma extensa faixa de terra de proporções continentais, mas não se distinguia muito, pois a distância ainda era muito grande, a curiosidade venceu a tristeza dos que ali estavam comigo naquela viagem.
E a terra se aproximava, lentamente, aumentado a curiosidade daqueles que vinham de um cenário de total caos e lágrimas.
Então o timoneiro fez soar novamente as trombetas, só que por duas vezes, num cântico que encheu os meus olhos de lágrimas, com certeza foi a melodia mais linda que eu já ouvi na vida. Tão logo as trombetas pararam de soar, começaram a explodir fogos de artifícios naquele continente, todos voltaram os olhos para assistir aquele espetáculo, por mais que fosse dia, era possível ver os desenhos no céu, os mais diversos, que faziam com que todos olhassem para o alto e esquecessem, por um instante, da terra que estava se aproximando.
Quando os fogos terminaram, o barco já estava a reduzir a velocidade, tudo estava próximo e o mais incrível é que era possível ver casas, ruas, praças e o mais espetacular, pessoas! Era possível ver pessoas naquela cidade! Que era muito linda e muito parecida com a cidade de Petrópolis na região serrana do Rio de Janeiro, tudo limpo, lindo de se ver, cada construção no seu lugar e em perfeita harmonia com o que estava a sua volta, um verde sem fim, bordado com flores de todas as cores, como se nós estivéssemos chegando..., chegando ao paraíso!
Quando o barco atracou e os embarcados puderam sair, Gabriel retornou para o meu lado e pediu que eu também fosse até o porto, ele iria me deixar por alguns instantes, mas eu seria assessorado por alguém que estava a minha espera para me guiar no que era para ser visto por mim. Perguntei quem seria o meu guia, com um sorriso de canto de boca ele falou que era surpresa. Dizendo isso ele se desmaterializou, indo para o céu em um feixe de luz, onde outro portal se abriu para que ele o atravessasse.
Quando voltei o meu olhar para o porto, percebi que os viajantes estavam em grande festa, com altos brados de alegrias, choros e risadas, já estavam no roll antes da entrada da cidade. O que me deixou com uma felicidade imensa é que eles finalmente descobriram que aquelas pessoas que naquela cidade estavam, se encontravam ali naquele porto por causa deles, os viajantes. Eles os aguardavam ali naquele lindo cais. Eu fiquei envolvido pela emoção, novamente chorei comigo mesmo, mas com muita alegria no peito, por ter tido a chance de ver que as pessoas que aguardavam os viajantes naquele lindo roll do porto, lindo e cheio de cores cintilantes, totalmente o oposto do local onde a jornada começou, nada mais eram do que os parentes!
Sim, pais, filhos, irmãos, avós, todos os que já tinham feito a viagem antes deles e que estavam ali para aguardá-los, ansiosos pelo reencontro, jamais pude imaginar tal cenário, de tão alegre e emocionado que fiquei com a alegria deles que, comecei a chorar de tristeza também, pois me lembrei do meu irmão, o meu caçulinha, que era 11 anos mais novo do que eu, que fez essa travessia em maio de 2009, no dia das mães. Fiquei alegre por todos, mas estava arrasado por dentro, inocentemente eu o procurei na multidão, mas não o vi. Baixei a cabeça para que ninguém percebesse as lágrimas caindo do meu rosto e agradeci a Deus por tudo o que testemunhei e pelo final feliz dos viajantes ao reverem as suas famílias.
Ainda de cabeça baixa e chorando baixinho, senti um leve tapa na minha cabeça e uma voz muito familiar, mas que a tempos eu não a ouvia.
- Isso acontece todo dia! Seu toupeira!
- Tampinha?! Você?!
Sem perceber, eu estava agarrado a ele, meu irmãozinho, num gesto impensado de saudade e amor que jamais imaginaria experimentar. Ter meu irmão ali, comigo, naquele lugar lindo, era algo que jamais pudera ter como real. Tanta alegria, tantas lágrimas de uma emoção bela, que deveria ser compartilhada com todas as pessoas do mundo.
- Que saudade meu querido, você partiu sem que eu pudesse dizer nada.
- Tinha tanto a dizer, nunca fui o teu irmão de fato, nunca te protegi, nunca te dei prova do meu amor, apenas competia sem te dar espaço e quando você se tornou adulto, sempre convivi com você em forma de competição, nunca te dei um abraço, um beijo, um carinho sequer e nunca tive tempo o suficiente para expressar tudo o que sentia. Quando você se foi, uma parte de mim morreu com você, me tornei um morto-vivo e sem destino naquele mundo que você deixou para trás, a vida não é igual, nada é igual, o buraco que lá ficou nos faz sangrar de dor e agonia todos os dias depois da sua partida.
- Tudo bem, seu toupeira, fica calmo ou sua pressão vai subir e você fica aqui de vez.
Ele deu uma risada característica dele, colocou as mãos dele nos meus ombros e continuou.
- Acha que eu não sabia que você me amava? Quantas vezes você tomou as minhas dores como se fossem suas? Você se esqueceu do Playstation que compramos juntos? Parecíamos duas crianças, você mais do que eu. Do dia em que você me levou ao Tivoly Park, na Lagoa Rodrigo de Freitas? Dos filmes que víamos no cinema? E de tantas vezes que você se calou diante das nossas discussões? Mesmo você estando certo? Só para não me desapontar? Das incontáveis vezes que você me fazia vergonha, quando falava aos meus amigos que tinha me carregado no colo com 3 dias de vida e trocado as minhas fraldas? Até apelido de fraldinha eu levei. Acha que eu não percebi como você trata o Adriano, nosso sobrinho, como forma de dar a ele o que você acha que não soube dar para mim? O que é isso senão uma grande e verdadeira prova de amor?
- Saiba que eu estive e estou contigo por todo esse santo tempo, quando cheguei aqui, eu fui recebido pelos nossos avôs Luis e Doroteu, eles me ajudaram nos meus primeiros dias aqui além do anjo Rafael, meu guardião. Gabriel bloqueou a sua mente para que você não pudesse pressentir a minha partida, devido a sua essência superprotetora que você tem, isso poderia te prejudicar. Só a nossa mãe e irmã puderam ter o presságio e a chance de se despedir no Cais da Dor e ver a minha partida.
- Eu nunca deixei de estar do seu lado, mesmo nos momentos mais difíceis, rezei muito por você, quando pensava em se matar, andando por aquelas ruas obscuras da Praça XV, eu também estava lá, pois sentia a sua dor e a sua culpa e as fiz também como se fossem minhas. Estive do seu lado até quando você recomeçou a andar, voltar a viver e a tentar ser feliz. Você demonstrava isso naqueles momentos em que nos encontrávamos em sonhos e você dizia que não era para que eu olhasse para trás, que era para seguir em frente e ser feliz. A sua áurea de luz, o seu lado angelical falando por você no seu subconsciente começou novamente a brilhar, você me dizia que aquela dor era normal nos humanos e que seria suavizada com o tempo, que eu ficasse com os nossos antepassados que já tinham feito a viagem antes e que ajudasse aos que desembarcassem em Passagem, para que eu conseguisse passar o conforto necessário para eles e a orientá-los para o novo caminho que estava por iniciar. Ao me dizer isso, percebi que você, apesar da dor, já estava restaurado, conforme Gabriel, seu guardião, havia me falado, seu toupeira!
- Mais uma gargalhada típica dele!
- A partir daí, comecei a cuidar dos nossos pais e da nossa irmã. Além de fazer o que você me pediu em sonho. Você nunca esteve e nunca estará sozinho, lembre-se disso.
- Ele me deu um cascudo e continuou a falar.
- Hoje estou aqui para que possa rever você, pois você precisava desabafar este amor incontido para que a sua alma pudesse ficar pura novamente e, dessa forma, a revelação que você está tendo nesse momento também possa liberar a sua áurea de luz, para que você possa voltar ao plano terreno e começar ajudar todas aquelas pessoas, que não tiveram o privilégio que você está recebendo, de poder ver todo esse continente totalmente ignorado pelo povo que vive na Terra.
- Daniel, isso que eu estou vivendo não é um sonho? Eu me lembro de estar na minha cama quando vi Gabriel, em forma de criança, do meu lado a pedir que eu o seguisse. A mesma criança que havia estado comigo na praça. Naquele momento eu estava pensando exatamente em como seria essa travessia entre esses dois mundos, daí estou aqui agora. Como diferenciar a realidade do sonho?
- Você terá os sinais necessários para que você possa compreender e acreditar em todos os acontecimentos que você está presenciando aqui, infelizmente terá que guardar isso com você por toda a sua vida terrena, com a sua áurea livre, terá um diálogo mais sólido e um olhar mais sereno para com as pessoas que se encontrarem no luto, e dará o conforto necessário para que elas possam continuar vivendo e sendo felizes até que o dia delas chegue também. Basicamente você fará com elas o que você já fez, a muito tempo passando, quando era um anjo trabalhando no Cais da Dor, no intuito de ajudar os visitantes, apenas você fará isso com eles no mundo dos que estão encarnados.
- Eu poderei entrar na cidade?
- Por enquanto não sua anta, mesmo por que você já esteve aqui em Passagem a serviço de Gabriel por diversas vezes, esqueceu o que ele te falou?
- Não, não, mas pelo menos fui promovido de toupeira para anta!
Era muito bom, novamente, dar gargalhadas com o meu irmão, mas sem perder tempo, que já estava terminando, ele continuou a me passar instruções sobre Passagem e o que eu deveria fazer no mundo dos vivos.
- Tudo o que você precisava relembrar já lhe foi mostrado, que era a viagem e o que acontece quando todos chegam até aqui, morra primeiro e você verá lá dentro, como se já não tivesse visto!
- Você não perde a oportunidade de tirar onda com a minha cara.
- Isso é o que sinto mais falta.
Demos outra sonora gargalhada e continuamos a conversa.
- Daniel? Por que o nome Passagem foi dado a este lugar? Isto Gabriel ainda não me relembrou.
- Passagem porque daqui há portais para muitos outros lugares, universos e dimensões. Aqui é mais simbolizado como um ponto de encontro. Como se fosse uma segunda Terra, para facilitar a compreensão dos viajantes que chegam e que ainda não tiveram as memórias de tempos passados recuperadas.
- Que nome estranho para se dar para uma cidade tão linda, mas faz todo o sentido.
- Acontece que você apenas está vendo os portões desse mega continente que é este lugar, há por aqui muitas outras cidades e lugarejos, além desse aqui. Todos nós vivemos com base na paz, no amor e na simplicidade, princípios esses divinais. Também vivemos socialmente com base na honestidade, franqueza e sinceridade uns para com os outros e vivemos familiarmente em fraternidade, fidelidade e fertilidade. Detalhe, minha esposa manda um abraço e... Você já é tio, dei o seu nome para o meu filho, em homenagem a você.
- Quer dizer que vocês podem ter filhos aqui?
- Sim, claro que sim, e muitos deles fazem a viagem até a Terra quando a maturidade chega para isso, para vivenciar uma vida como nós fizemos, outros ficam por aqui mesmo, só que, para conhecer as outras cidades, de níveis mais elevados do conhecimento referente a todas as grandezas multiversais criadas pelo Grande Pai, temos que ficar fazendo essas viagens de ida e volta, não apenas para a Terra, para adquirir mais e mais conhecimento e ajudarmos aos nossos irmãos que se perderam ao longo do caminho ou estão com dificuldades para reencontrá-lo, dessa forma evoluímos e, caso seja a nossa vontade, viajamos para locais de níveis mais elevados e, perdemos em definitivo, a nossa conexão Terrena. No meu caso, por enquanto fico por aqui em Passagem. Primeiro porque vi muita turbulência na vida de vocês e isso me prejudicou um pouco, eu queria ajudar e não sabia. Com o auxílio dos nossos avôs e de Rafael eu superei essa situação e, com os nossos contatos através dos sonhos e das orações da Iara e da Mamãe, percebi que estava tudo ficando bem, só o nosso pai que continua perdido, tenha paciência com ele, é um espírito novo e terá que fazer muitas viagens a Terra para conseguir o conhecimento que temos hoje meu irmão, nesse caso, nós é que somos os ancestrais dele. Então a minha luta por vocês aqui em Passagem ficou na base das orações que me ensinaram e da geração de energia do meu corpo para purificar os pensamentos de vocês. Por fim, eu reencontrei a minha alma gêmea, mulher que é a essência da minha existência, Adriana me deu um filho que leva o seu nome, detalhe, o Maurinho é tão desastrado e toupeira quanto você, eu o chamo de pequena toupeira.
- Essência e existência são palavras minhas seu prego!
- Há! Há! Há!... Eu sei!
- Há! Há! Há!... Tampinha, você não muda!
Nisso a gente deu uma agarrada um no outro e começamos a fazer cócegas até que alguém pedisse penico. Como sempre, dei o braço a torcer.
- Você não tem vergonha de vencer um novato?
- Você? Novato? Onde existe por aí um novato de 23 mil anos? As nossas idades juntas somam mais do que o período do fim da era do gelo na Terra!
- Há dá um desconto!
- Eu não, e você vá andando atrás de uma namorada, pois eu quero mais um sobrinho. Sua alma gêmea está a sua procura, canalize o seu pensamento que você a irá encontrar.
- Me pede algo mais fácil.
Mais gargalhadas.
Passamos muito tempo juntos, na entrada da cidade, contando momentos da nossa história, quando juntos, no planeta Terra, empreendemos a nossa jornada. Não sei quanto tempo passei naquele lugar sagrado com meu irmãozinho, sei apenas que desejava não mais voltar.
Gabriel, percebendo a minha intenção, veio ao meu encontro, dizendo que já era tempo de retornar ao barco, pois eles precisavam retornar e eu já estava a muito tempo fora do meu corpo físico. E já havia um novo grupo de viajantes esperando pelo Cisne Branco no Cais da Dor, pessoas essas que também passariam pela mesma experiência que foram relembradas a mim, nessa minha jornada.
Foi difícil me despedir do meu irmão, sabendo que eu não o veria tão cedo. Dei um forte abraço nele e as lágrimas voltaram a cair.
- Não retorne para a Terra ou vá para outro lugar antes que eu volte a colocar os meus pés em Passagem Tampinha.
- Não preciso mais voltar, já evolui o suficiente, assim como você, mas ainda não fiz o teste, pois o grande Pai não vê que o meu momento chegou, mas por agora foi concedido a mim, poder ir para as outras cidades daqui, conhecer algumas, mas sempre voltar para Passagem ao final de um ciclo que, é o que para o pessoal da Terra, corresponderia a 1 dia. Só que, o nosso dia aqui, demora 10 dias para vocês na Terra. O tempo aqui é diferente, passa de forma mais lenta. Por mais que, aparentemente, um dia aqui seja igual a um típico dia Terreno.
- Gostaria de conseguir relembrar os outros mundos que visitei em outras jornadas, mas entendo que não é o momento.
- Sim, eu entendo a sua curiosidade, também foi a minha, no momento certo, você não apenas se reencontrará nesse continente, mas também nas infinitas outras dimensões e universos que existem. Como te falei, aqui é um dos infinitos outros pontos de encontro. Tudo está em eterna evolução e temos que evoluir com eles. Ficar estático também serve para evoluir, somos muito unidos e nossas passagens sempre são em conjunto. Por isso eu esperarei. Volte para a Terra e cumpra a missão que lhe foi dada. Até breve meu irmão.
- Até breve... Tampinha...
Foi muito difícil ver o meu irmão caçula se despedir de mim. Quando Gabriel veio para mostrar a o mapa da cidade e os jardins que ficavam na entrada, além do selo que ficava cravado no chão do cais, onde os viajantes colocavam os seus pés sempre que pisavam pela primeira vez naquela terra linda, em que as flores das quatro estações conhecidas na Terra estavam por todos os lugares. Quando olhei novamente para a minha frente, Daniel já tinha se retirado e não havia mais ninguém fora dos portões, que já estavam fechados, abaixei a cabeça, entendi que tudo aquilo que Gabriel fez ao me mostrar o mapa e os demais detalhes foi para me distrair e, dessa forma, não sentir dor, a dor do retorno ao mundo terreno.
Seguindo o meu guardião, retornei ao Grande Cisne para a viagem de volta para o Cais da Dor, quando Gabriel me beijou os dois olhos e disse suavemente.
- Agora durma minha criança, em breve nos veremos novamente e em definitivo. Boa jornada de retorno.
Novamente o véu escuro da noite cobriu os meus olhos. E nada mais foi visto depois disso.
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Um ronco de motor em alta rotação, buzinas e altos brados de pessoas pelas ruas. Levantei-me assustado, tentando alcançar algo para me segurar, estava tonto e muito cansado, além de uma terrível dor na cabeça. Percebi que estava novamente em meu apartamento, acordado e ao lado da minha cama. Acabei por sentar-me na cadeira que estava ao meu lado e comecei a refletir.
Tinha acordado de um sono profundo, parecia que estava com as minhas energias totalmente descarregadas. O dia já tinha amanhecido, mas ainda era cedo para me arrumar para o trabalho, pude novamente ouvir os sons turbulentos da cidade, que acordava junto comigo, para mais um dia de luta, em mais um dia normal e barulhento do cotidiano diário da zona urbana do Rio de Janeiro, e eu querendo dormir novamente, de tão cansado que estava, mal conseguia abrir os olhos.
Depois de um tempo refletindo sobre tudo o que tinha visto no sonho, comecei a me perguntar se tudo aquilo teria sido verdade ou um grande e intenso sonho. Tudo isso venceu o meu cansaço e fez com que eu voltasse ao meu normal, a ponto de começar a juntar os pontos do que eu presenciei no sonho somado as coincidências do que vi no dia anterior.
Fiquei um longo tempo sentado na cadeira, ao lado da cama, a pensar sobre tudo o que tinha passado e vivenciado, quando percebi um passarinho tentando entrar pela janela do quarto.
Fiquei preocupado dele se machucar, então fui em direção a ele para tentar ajudá-lo a sair, com a minha aproximação, o pequenino se assustou e foi embora, encontrando uma saída na janela ao lado.
Percebi que era um pardal e imaginei que ele queria fazer um ninho em cima do guarda-roupas e ri comigo mesmo, a paisagem vista do local onde eu estava não era muito bela, apenas um conjunto de edifícios enfileirados lateralmente a minha frente, do outro lado da rua, mas senti uma energia intensa entrando no meu peito e me enchendo de vida, senti uma alegria enorme por estar vivo, por estar ali e pelo que sonhei. Sempre os sonhos em que eu encontrava o meu irmão me deixavam feliz.
Nesse momento de reflexão e de uma certa meditação, agradeci a Deus por tudo e por ter chegado até aquele presente momento em minha jornada. Nesse momento, abaixei a cabeça e olhei para o chão, vi algo que não pude entender o que era por alguns segundos, mas quando me abaixei, para o meu espanto, percebi que o objeto ali no piso, era um selo com o símbolo impresso, era o mesmo símbolo que Gabriel me mostrou na entrada da cidade de Passagem, no chão do cais e na parte de cima do portão da entrada.
Por um momento, creio eu, o mundo parou. Conheço selos, pois sempre os colecionei e sabia muito bem que nada daquele gênero existia em lugar algum do planeta. Lembrei do que Daniel me falou em sonho, “- Você terá os sinais necessários para que você possa compreender e acreditar em todos os acontecimentos que você está presenciando aqui...” Quando consegui sair do choque e organizei tudo na minha cabeça do início ao fim, com o selo na mão, fui ao meu computador e comecei a escrever tudo o que tinha vivenciado. Publiquei no meu site de textos e, através dele, enviei e-mails para o máximo de pessoas que pudessem ler esta história. Deixando os meus contatos para que pudessem ouvir da minha boca, tudo o que havia sido revelado.
Não sei até que ponto poderemos saber sobre o que acontece ou aconteceu em nossas vidas, o que se passa depois ou antes delas. E sequer o que nos é revelado enquanto estamos aqui nesse plano. Com certeza, e isso é fato, não estamos sozinhos nesse universo, mesmo estando separados por dimensões imensuráveis, que fogem totalmente da nossa compreensão, podemos dizer que somos vigiados por seres que possuem um conhecimento muito mais amplo que o nosso. Eles nos guiam, eles nos orientam, eles nos acompanham não apenas em nossa jornada terrena, mas também durante a travessia, principalmente na travessia, todos sendo levados constantemente pelo Grande Cisne Branco.
Desde esse dia, da grande revelação, sempre que tenho contato com pessoas que perderam seus entes queridos, faço a narrativa em que eu fui a testemunha, de que, na realidade, a morte nunca é o fim e sim o início de um novo começo. E que nunca estaremos sós. Sempre teremos ao nosso lado, os nossos entes queridos, não os vemos, mas podemos sentir eles a nossa volta, sempre que quisermos e estivermos prontos para isso.
Estou a viver a minha vida normalmente, aguardando pelo chamado, que irei atender sem questionar. Peço que todos estejam de prontidão também, pois os sinais estão acontecendo, uma grande escuridão está por nos cobrir e a humanidade pode estar no crepúsculo da sua existência.
Tenham fé e sejam fortes, nunca vejam a vida como a que vemos no Cais da Dor, ele é apenas o início de uma viagem, o retorno a origem. Orientem-se em vida de acordo com aqueles que se foram e nos esperam do outro lado, na cidade de Passagem, que sejamos fortes para não nos perdermos no caminho, e que venhamos a defender uns aos outros, pois além de sermos humanos, também somos irmãos e, família nasceu para se defender. Somos guardiões e guardiões sempre seremos.
Mauro Veríssimo